domingo, 31 de maio de 2020

Um oásis em casa


De repente, sob a ameaça de um inimigo invisível, nossos planos foram interrompidos. Nossa rotina foi bruscamente alterada. O nosso comportamento reeditado. Em nome da preservação da vida, nossa e do outro, tivemos que nos distanciar fisicamente, ressignificar a existência. A convivência social, culturalmente caracterizada pelo toque, pelos cumprimentos calorosos, demonstrados através de beijos, apertos de mão, abraços e afagos, tiveram que assumir a frieza que sempre nos causou estranheza em outros povos do mundo. Estamos nos readaptando, diariamente, a uma nova realidade. Especialmente aqueles que, podendo, estão reclusos em suas casas, respeitando as orientações dos órgãos competentes e dos profissionais de saúde.
Está sendo fácil? Não. Mas, essa talvez seja uma oportunidade preciosa de encarar o desafio de reaprender a aprender. E nesse processo de reaprendizado, Fernando Pessoa, usando a voz de seu heterônimo Alberto Caieiro, sintetiza bem essa urgência na busca da tão necessária renovação. Vejam essa estrofe do poema “Deste Modo ou Daquele Modo”:
(...)
Procuro despir-me do que aprendi
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu...

O poema, expressão íntima do autor, nos convida à revisitação do eu, a uma abertura para o novo: novo olhar, novo sentir, novo pensar.  A arte, em suas várias formas de expressão, pode nos revelar muito sobre o momento atual, sobre a nossa relação com o mundo e com nós mesmos. É capaz de acessar sentimentos latentes, refazê-los, transformá-los. É através da arte que o ser humano consegue compartilhar suas vivências, sentimentos, pensamentos com todos aqueles que tenham sensibilidade para absorver a sua linguagem subjetiva, e construir significados, a partir da essência individual de cada um. Na concepção de Leonardo da Vinci: A arte diz o indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.
E nesse momento de distanciamento físico, não estamos privados da conexão com o universo das artes. Ao contrário, estamos sendo nutridos por um arsenal artístico diverso, através dos vários dispositivos tecnológicos disponíveis. As lives, por exemplo, por intermédio das redes sociais, trouxeram nossos artistas preferidos para dentro de nossas casas, atenuando as nossas angústias com a alegria e leveza de suas canções. E não para por aí. Diversas temáticas relacionadas ao universo das artes, ou do cotidiano de forma abrangente, também estão sendo abordadas através desse mecanismo de comunicação. Um salve à tecnologia!
Além disso, podemos zerar aquela lista de séries e filmes, que antes não tínhamos tempo suficiente para vê-las. Agora, o tempo é sutil como o cair de folhas no outono. E quem disse que não podemos viajar nesse momento de pandemia, nunca sentiu a sensação única de conhecer outras culturas e vivências, histórias intrigantes, através de um enredo fascinante, codificado nas páginas de um livro. Ou, atendendo a um grito da alma, escrever ou ler um poema que expressa o que jamais conseguiria ser dito de forma convencional.
Dessa forma, na concepção do filósofo Nietzsche: Temos a arte para não morrer da verdade. Essa máxima nunca fez tão sentido quanto agora, porque o que temos é esse momento presente, um futuro de incertezas, e um oásis em casa para saciarmos a sede das horas.