De repente, sob a ameaça de um
inimigo invisível, nossos planos foram interrompidos. Nossa rotina foi
bruscamente alterada. O nosso comportamento reeditado. Em nome da preservação
da vida, nossa e do outro, tivemos que nos distanciar fisicamente,
ressignificar a existência. A convivência social, culturalmente caracterizada
pelo toque, pelos cumprimentos calorosos, demonstrados através de beijos, apertos
de mão, abraços e afagos, tiveram que assumir a frieza que sempre nos causou
estranheza em outros povos do mundo. Estamos nos readaptando, diariamente, a
uma nova realidade. Especialmente aqueles que, podendo, estão reclusos em suas casas,
respeitando as orientações dos órgãos competentes e dos profissionais de saúde.
Está sendo fácil? Não. Mas,
essa talvez seja uma oportunidade preciosa de encarar o desafio de reaprender a
aprender. E nesse processo de reaprendizado, Fernando Pessoa, usando a voz de
seu heterônimo Alberto Caieiro, sintetiza bem essa urgência na busca da tão
necessária renovação. Vejam essa estrofe do poema “Deste Modo ou Daquele Modo”:
(...)
Procuro
despir-me do que aprendi
Procuro
esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram
E
raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar
as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me
e ser eu...
O poema, expressão íntima do
autor, nos convida à revisitação do eu, a uma abertura para o novo: novo olhar,
novo sentir, novo pensar. A arte, em
suas várias formas de expressão, pode nos revelar muito sobre o momento atual,
sobre a nossa relação com o mundo e com nós mesmos. É capaz de acessar
sentimentos latentes, refazê-los, transformá-los. É através da arte que o ser
humano consegue compartilhar suas vivências, sentimentos, pensamentos com todos
aqueles que tenham sensibilidade para absorver a sua linguagem subjetiva, e
construir significados, a partir da essência individual de cada um. Na
concepção de Leonardo da Vinci: A arte
diz o indizível, exprime o inexprimível, traduz o intraduzível.
E nesse momento de
distanciamento físico, não estamos privados da conexão com o universo das artes.
Ao contrário, estamos sendo nutridos por um arsenal artístico diverso, através
dos vários dispositivos tecnológicos disponíveis. As lives, por exemplo, por
intermédio das redes sociais, trouxeram nossos artistas preferidos para dentro
de nossas casas, atenuando as nossas angústias com a alegria e leveza de suas
canções. E não para por aí. Diversas temáticas relacionadas ao universo das
artes, ou do cotidiano de forma abrangente, também estão sendo abordadas através
desse mecanismo de comunicação. Um salve à tecnologia!
Além disso, podemos zerar
aquela lista de séries e filmes, que antes não tínhamos tempo suficiente para vê-las.
Agora, o tempo é sutil como o cair de folhas no outono. E quem disse que não
podemos viajar nesse momento de pandemia, nunca sentiu a sensação única de
conhecer outras culturas e vivências, histórias intrigantes, através de um
enredo fascinante, codificado nas páginas de um livro. Ou, atendendo a um grito
da alma, escrever ou ler um poema que expressa o que jamais conseguiria ser
dito de forma convencional.
Dessa forma, na concepção do
filósofo Nietzsche: Temos a arte para não
morrer da verdade. Essa máxima nunca fez tão sentido quanto agora, porque o
que temos é esse momento presente, um futuro de incertezas, e um oásis em casa
para saciarmos a sede das horas.